Principais aprendizados sobre Transição Energética no Mar: Desafios e Oportunidades para o Brasil.
Renata de Marsillac
> Grandes aprendizados a nível global
Transição é iminente: a transição energética na navegação vai acontecer e tem data marcada. A IMO tem caráter regulatório, e o sucesso da transição para o low-sulphur em 2020 pavimenta e comprova a seriedade da organização com a estratégia de descarbonização, com medidas econômicas que entrarão em vigor em 2027. Tudo caminha para que o mar, que muitos acreditavam estar entre os setores de mais difícil mudança, seja o primeiro setor a ser regulado e descarbonizado a nível global.
Etapas de mudança: medidas de eficiência devem nos levar até a meta de 2030 de 40% de redução de CO2 e 20% de GHG. Medidas podem ser operacionais (ex: redução da velocidade, otimização de rotas e utilização, redução de tempo de espera no porto) e técnicas (ex: melhorias de projeto do navio, fontes de energia complementares solar, eólica e elétrica). Para atingirmos a meta de 2040, a mudança de combustível será inevitável, entrando em uma fase muito mais custosa da transição, que requer uma mudança estrutural, e precisa ser iniciada nessa dé
Solução intermediária: novos combustíveis precisam de escala que não existe hoje; em paralelo, temos uma frota mundial de 70 mil navios com uma vida útil de 20 a 30 anos que não será rapidamente renovada para operar com essas novas soluções. Haverá um phase-out gradual dos combustíveis fósseis e phase-in dos verdes. Nesse contexto, serão necessárias soluções intermediárias realistas de descarbonização como o drop–in de biocombustíveis, que podem facilmente se adaptar às estruturas atuais para reduzir emissões, enquanto soluções definitivas escalam.
Múltiplas soluções: ao contrário do que foi para o petróleo, nessa nova fase não haverá solução única de combustível que viabilize a descarbonização, não haverá “bala de prata”, e sim múltiplos combustíveis que irão coexistir globalmente alavancando vantagens regionais. A boa notícia é que a navegação possui mais flexibilidade que a aviação, por exemplo, para a viabilização de diferentes soluções.
Solução integrada e corredores verdes: não é suficiente investir em novas embarcações. A descarbonização envolve uma longa cadeia de agentes até chegar ao navio, incluindo a produção e o transporte de combustíveis, então é importante que se pense uma abordagem integrada para toda a cadeia de valor. Como deve haver múltiplas soluções de combustível, será necessária a criação de corredores verdes – rotas de transporte marítimo que tenham soluções integradas de ponta a ponta que permitam a navegação com baixa emissão. Aqui será imprescindível a cooperação internacional, e acordos entre países para a criação desses corredores já começaram a ser feitos. Cidades portuárias serão importantes stakeholders desses corredores.
Visão sistêmica: descarbonização é sobre fazer conta. Trade-offs são complexos e é preciso ter uma visão ampla do sistema para equilibrar a redução das emissões com o consumo de energia, de água, de terras, entre outros. Também é preciso um olhar regulatório sistêmico para evitar o vazamento das emissões para outros setores ou a criação de incentivos distorcidos. Pautas precisam ser conciliadas entre setores e regiões.
Pessoas: será necessária a qualificação da mão de obra para lidar com a crescente complexidade da operação marítima, desde o projeto de embarcações e equipamentos até o dia-a-dia da operação do navio. Há também uma importante discussão de segurança, dado o potencial uso de combustíveis altamente tóxicos, como a amônia, somados aos já crescentes incidentes de eventos climáticos. Podemos qualificar nossos marítimos nessa nova realidade, para atenderem a demanda mundial, usando como base a demanda já existente de tripulantes para os serviços na costa.
> Grandes aprendizados para o Brasil
Potencial em múltiplas rotas: o Brasil possui vantagens competitivas em múltiplas rotas de combustível, e deve investir para alavancar vantagens regionais e criar solução multi-facetada.
Biocombustíveis brasileiros: os biocombustíveis foram destacados como um dos grandes potenciais de liderança do Brasil na transição energética, sendo uma solução que já possui tecnologia e infraestrutura disponível a custos competitivos no país e funciona como solução drop-in. Muitas empresas no país já realizaram testes bem sucedidos, com até 24% de biocombustível na mistura e 19% de redução nas emissões. Outra solução de destaque foi o etanol brasileiro, altamente competitivo em custo e com as menores emissões mundiais. A Wartsila realizou o primeiro teste com etanol em um motor a metanol, e obteve o impressionante resultado de 74% de redução nas emissões comparado ao bunker. Contudo, ainda há desafios tecnológicos e regulatórios a serem contornados para permitir o seu uso em escala.
E-fuels: o Brasil tem ainda um dos menores custos de energia limpa do mundo, o que nos dá grande vantagem na produção de outros fortes candidatos a combustíveis do futuro: hidrogênio, amônia e metanol verdes. Nossa larga oferta de CO2 biogênico, necessário junto ao hidrogênio para a produção de metanol, ainda amplia essa vantagem. Contudo, a percepção geral é de que essas soluções não devam atingir escala viável no curto prazo.
Energia nuclear: ainda foi levantada a possibilidade do uso de energia nuclear na navegação, onde o Brasil também reune condições favoráveis. A tecnologia já é utilizada hoje em dezenas de embarcações no mundo, como porta-aviões e quebra-gelos, mas possui desafios que incluem notadamente a segurança e desafios reputacionais.
Corredores: temos uma demanda cativa de energia para os transportes de cabotagem, que pode servir como base para alavancar corredores verdes baseados nos combustíveis de maior competitividade para o Brasil. Esses corredores nacionais podem ser a base para corredores globais com esses combustíveis.
> Desafios/perguntas pendentes para o Brasil
Medida econômica: o impacto e a viabilidade das rotas para o Brasil ficarão mais claras a partir da definição da medida econômica pela IMO em 2025. Estudos estão sendo realizados com o apoio da USP para avaliar o impacto dos diferentes modelos nos países e apoiar a decisã É importante garantir que transição seja justa, e que não aumente a desigualdade já existente entre os países.
Segurança alimentar: a disputa do uso de recursos para a alimentação versus energia, o food vs fuel, é um debate crescente. Porém, foi levantado o ponto de que essa discussão não é aplicável para o Brasil, onde biocombustíveis são parte de um ciclo complementar, e não competidor, à produção de alimentos (food and fuel). Também foi apontado que não há desmatamento na produção dos nossos biocombustíveis. É importante realizar estudos que avaliem essa relação e garantam que os padrões corretos sejam aplicados aos nossos biocombustíveis.
Padrões para o sul global: é imprescindível nos articularmos para garantir que os interesses do sul global estejam representados nas regulações internacionais. Primeiramente, garantindo que o cálculo do ciclo de vida dos biocombustíveis seja realizado considerando as realidades de cada país, em vez do uso de um padrão único, de forma a refletir nossas vantagens. Além disso, é preciso que limitações aos biocombustíveis advindas da discussão de food x fuel e uso da terra sejam revistas para a realidade brasileira, onde a produção de combustíveis pode ser um subproduto da produção de alimentos. Por fim, devem ser discutidas distorções da medida de CII para a cabotagem brasileira que geram incentivos contrários à descarbonizaçã
Infraestrutura e oferta: empresas de navegação pioneiras afirmam que falta de oferta e infraestrutura de novos combustíveis são a principal limitação para iniciar a transição. Para as demais, a falta de atratividade financeira é o limitante. Quando as medidas econômicas começarem a mudar o balanço da viabilidade econômica, é importante que a infraestrutura não seja um gargalo. Necessita haver um planejamento conjunto dos atores públicos e privados para definir e investir nos caminhos mais favoráveis para o Brasil.
Financiamento: bancos privados dificilmente assumirão riscos da transição energética. BNDES e outros agentes públicos terão um grande papel no financiamento da descarbonização da navegação. Essa limitação de recursos reforça a importância do planejamento e decisões pensadas sobre o caminho que será assumido pelo Brasil para que financiamento vá para projetos com maior potencial.
> E a mensagem final que permeia a discussão:
Década decisiva para protagonismo: esta é a década decisiva para se estabelecer a trajetória futura de descarbonização mundial, e hoje o Brasil tem uma janela de oportunidade histórica para assumir a liderança climática. Contudo, é preciso senso de urgência e esforço coletivo do setor para levar o potencial da ideação à realização, e consolidar esse protagonismo antes que investimentos maciços de países desenvolvidos na transição mudem o cenário competitivo. Não queremos olhar para trás em dez anos e ver o potencial que perdemos. Saímos com um sentimento de urgência, mas também de otimismo: termina a era do negacionismo, se inicia a era da união do setor para posicionar o Brasil como um protagonista, e não uma vítima, dessa transição.